Livio Oricchio

Ferrari F1: ruim com Montezemolo, talvez pior sem ele

Livio Oricchio

10/IX/14

Nice, França

O primeiro sinal de que haveria importante restruturação administrativa na Ferrari foi a demissão do diretor esportivo, Stefano Domenicali, este ano, logo depois do GP de Bahrein, no início de abril. O sempre acessível, afável, simpático diretor liderava a divisão esportiva da equipe desde 2008.

Para o seu lugar a escolha não veio do presidente da Ferrari, Luca Cordero di Montezemolo, mas mais de cima, do presidente do Grupo Fiat Chrysler, sócia majoritária da Ferrari, Sergio Marchionne, profissional que goza de grande prestígio dentre os integrantes da família Agnelli por ser o maior responsável por tirar o Grupo Fiat Chrysler de uma situação financeira ameaçadora e levá-lo a crescer novamente.

Marchionne mandou Montezemolo chamar Marco Mattiacci para substituir Domenicali. Mattiacci havia sido escalado pelo presidente do Grupo Fiat Chrysler para liderar a Ferrari na América do Norte. Em 2013, a empresa vendeu no total 6922 automóveis, sendo cerca de 2000, ou 30%, para os norte-americanos.

A insatisfação da direção da Fiat com relação a Ferrari não era comercial, mas esportiva. Mas como sempre disse o próprio fundador da lendária marca italiana, Enzo Anselmo Ferrari, ''o que faz a Ferrari vender carro são as suas vitórias na Fórmula 1'', o peso do insucesso nas pistas era grande.

Essa foi exatamente a questão mencionada com ênfase por Marchionne, no último fim de semana, quando entre ele e Montezemolo se estabeleceu uma troca de lembranças não gentis através da imprensa. O presidente da Fiat estava em Cernobbio, distante meia hora de automóvel de Monza, onde se encontrava Montezemolo, acompanhando a desastrosa participação da Ferrari no GP da Itália.

Vale a pena saber o que Marchionne afirmou, literalmente: ''A Ferrari é controlada pela Fiat. Nós temos 90% e os 10% restantes pertencem a Piero Lardi Ferrari (filho do Comendador Enzo). Nós deixamos a Ferrari ser administrada por Montezemolo por um período de tempo por duas razões: a independência do produtor e o posicionamento do produto no mercado. Por isso era importante que se separasse da Fiat'', disse o presidente da empresa.

E prosseguiu: ''Nós estamos a serviço da Fiat. Quando a empresa muda de ideia ou não há mais convergência de objetivos, é hora de rever as coisas. Existem dois aspectos na Ferrari para nós importante: os resultados econômicos, no qual Montezemolo fez um ótimo trabalho, e o cumprimentei, e o aspecto da gestão esportiva''.

Marchionni disse, ainda: ''O coração da Ferrari existe para vencer na Fórmula 1. Ver a Ferrari naquela condição, naquelas colocações, sem vencer nada desde 2008, me entristece, sendo que dispõe dos melhores pilotos que há no mundo, de serviços de boxes de qualidade excepcional e de engenheiros realmente capazes''.

Em outras palavras, o que falta para a Ferrari é uma administração esportiva eficiente, já que todo o restante, segundo Marchionne, existe. E, claro, a solução lógica é a troca do comando.

Montezemolo foi demitido, não pediu demissão. Assim como Domenicali, escolha de Montezemolo, foi demitido, e não pediu demissão.

Em Monza, Montezemolo respondeu aos jornalistas que ele decidia quando deixar a Ferrari. Marchionne não gostou nada de ouvi-lo e ontem, segunda-feira, viajou de Torino, sede da Fiat, para Maranello, da Ferrari, a fim de olhar nos olhos de Montezemolo e lhe dizer que estava fora da empresa.

O agora ex-presidente da Ferrari é um homem carismático. E talvez o mais vaidoso que já passou pela Fórmula 1. Ao ver um cameraman se aproximar mudava sua postura. Um artista de Hollywood não faria melhor.

E ganhou muito dinheiro à frente da Ferrari. Além de um valor regular extremamente elevado, a cada conquista do período de ouro da equipe, de 1999 a 2004, quando obteve cinco títulos de pilotos seguidos, com Michael Schumacher, e seis de construtores, levava para casa um bônus digno apenas dos reis. O título de 2007, com Raikkonen, lançou na sua conta bancária um extra de 3,5 milhões de euros. É um dado público.

Montezemolo tem méritos importantes por aquela fase que sucesso não atingida por nenhuma equipe na história da Fórmula 1. Viu que a estrutura criada por Jean Todt estava funcionando e, apesar de sofrer com o sucesso de outros profissionais do grupo, procurou se posicionar de forma a que a torcida também visse no seu trabalho a razão de tantas conquistas.

Todt blindou o grupo formado por ele do comando geral, Ross Brawn, na área técnica administrativa, Rory Byrne, na de projeto, Gilles Simon, motor, e, claro, Michael Schumacher. As decisões chegavam prontas para Montezemolo. Poderia não aceitá-las, mas inteligentemente as aceitava. Estava dando resultado.

A Ferrari nunca trabalhou assim. E esse é o seu maior problema. E, agora, com a troca de Montezemolo e Marcheonne assumindo também a presidência da Ferrari, essa filosofia do troca tudo se não dá certo, típica italiana, poderá voltar a ser praticada em extremos. É o que parece, ao menos.

O grande mérito de Todt desde que assumiu a Ferrari, no GP da França de 1993, é exatamente esse: diagnosticar que o grupo precisava de um planejamento e mesmo sem grandes resultados manter-se naquela estrada. As conquistas seriam o fruto desse processo contínuo de maturação do grupo. Como, de fato, aconteceu.

Dá para imaginar Marchionne agindo dessa forma, depois do seu discurso de domingo? Pouco provável. E outra questão que está no ar é como conciliar a presidência do Grupo Fiat Chrysler, com toda sua complexidade de responsabilidades, com a presidência da Ferrari, tendo milhões de torcedores o acompanhando de perto e a imprensa o colocando sob a lamínula de um microscópio?

Mais: será ainda mais cobrado do que Montezemolo por resultados. E na Fórmula 1 eles não vêm de imediato.

Mattiacci é um homem de Marchionne e não tem experiência de Fórmula 1. Mas já mostrou ter entendido quais os motivos de a Ferrari ter ficado tão para trás de Mercedes, Williams, Red Bull, por exemplo.

Ratificou a carta branca à dupla de novos projetistas, James Allison e Dirk de Beer, ex-Lotus, já dada por Domenicali, reduziu a importância do grego Nikolas Tombazis no projeto, o responsável pelos carros italianos desde 2007, e substituiu o diretor da área de motores, Luca Marmorini, por Mattia Binotto. Aqui há uma grande dúvida se agiu corretamente na escolha.

O fato é que a Ferrari tem boas chances de ser mais competitiva em 2015. O que Marchionne não pode fazer é voltar a implantar o modelo de gestão que existia antes da chegada de Todt e o que começou a se esboçar depois da sua saída, no fim de 2007. Domenicali não era o líder com poder centralizador como a gestão de uma organização como a Ferrari, fortemente influenciada por razões emocionais, exige.

Sem Todt, foi possível ouvir Montezemolo afirmar várias vezes que ''estava dando uma mão a Domenicali'' na administração esportiva. Domenicali era uma extensão de Montezemolo. Tinha independência bastante restrita. O que mostra que com Todt no comando Montezemolo ia bem. Concordava com quase tudo do francês.

Quando Montezemolo se encheu e passou a querer mandar no time, em 2007, já sem Michael Schumacher e Rory Byrne, Todt entendeu que era o momento de cair fora. Se com o francês a liderar Montezemolo teve o mérito de não confrontá-lo por os resultados estarem sendo obtidos, sem Todt, Montezemolo se expôs por inteiro. E a Ferrari nunca mais ganhou nada. Mesmo sendo a organização de maiores recursos na Fórmula 1.

Poderia se pensar: mas Montezemolo foi campeão com Niki Lauda em 1975 e 1977, além de vencer três campeonatos de construtores, 1975, 1976 e 1977. Bem jovem, ainda, Montezemolo foi diretor esportivo da Ferrari, na maior parte desse tempo.

Mas há como comparar a Fórmula 1 daquela época com a de hoje? Decisivamente não! As exigências eram outras. O número de variáveis que define os resultados cresceu exponencialmente.

O ex-presidente da Ferrari tem outro grande mérito além de respeitar a eficiência do grupo de espinha dorsal Todt-Brawn-Byrne-Simon-Schumacher. Hoje a Ferrari quase não depende da Fiat para existir como equipe de Fórmula 1. É uma imensa conquista de Montezemolo.

Durante a maior parte da sua história, desde 1969, quando a Fiat comprou do Comendador Enzo a maior parte da Ferrari, a montadora pagou a conta. E que conta!

Hoje, depois de lutas a céu aberto com Bernie Ecclestone, para a FOM redistribuir mais dinheiro às equipes, e após os megacontratos de patrocínio assinados pela Ferrari, com Philip Morris, Banco Santander, Shell, Weichai, Kasperski, Hublot, dentre outros, a Ferrari, escuderia de Fórmula 1, não depende mais da Fiat.

Os cerca de 220 milhões de euros que investe por ano vêm dessas fontes. Para não mencionar que a divisão de automóveis é hoje altamente rentável e, se necessário, pode deslocar verba para o time de Fórmula 1. Isso tudo representa algo de incomensurável importância para a equipe.

As próximas semanas serão reveladoras de quais rumos a Ferrari tomará com Marchionne assumindo as rédeas da condução. A impressão é de que há chances elevadas de voltar a ter uma administração à la italiana ainda mais caracterizada que a de Montezemolo, o que para a Fórmula 1 definitivamente não funciona.