Livio Oricchio

Detalhes importantes do acidente de Bianchi em Suzuka

Livio Oricchio


05/X/14

São Paulo

Veja como são as coisas. No GP do Canadá do ano passado morreu um comissário, atropelado por um dos tratores utilizados para a retirada de carros que abandonam as provas. O mexicano Steban Gutierrez parou sua Sauber-Ferrari numa das áreas de escape do Circuito Gilles Villeneuve, em Montreal, e o motorista do trator, sem poder ver que um dos auxiliares caíra, passou sobre ele.

Aquele veículo de serviço, cheio de arestas potencialmente muito perigosas diante de os carros de Fórmula 1 não passarem distante, permaneceu bom tempo no trabalho, longos minutos, até que a área voltasse a ficar desimpedida.

Junto de dois outros amigos, fomos conversar com Charlie Whiting, depois da corrida. Lembro-me de na conversa abordarmos o tema do risco desses tratores estarem próximos do asfalto, em algumas circunstâncias.

A resposta de Whiting me desestimulou a dar sequência ao assunto: ''Quando acontece de termos um carro de serviço na pista, na área de escape, os comissários expõem duas bandeiras amarelas agitadas. E os pilotos sabem que nessas situações são obrigados a reduzir significativamente a velocidade. E estamos sempre muito atentos a quem não respeita a regra. É verdade que choques com tratores são perigosos, mas como disse os pilotos têm de tirar o pé do acelerador. Acreditamos que a medida seja suficiente para evitar acidentes dessa natureza''.

Hoje, pouco mais de um ano depois daquela conversa informal com Whiting, no Canadá, Jules Bianchi colidiu com sua Marussia-Ferrari no trator que retirava a Sauber de Adrian Sutil da área de escape da curva 7 de Suzuka e está em estado crítico de saúde, após cirurgia na cabeça. O piloto perdeu a consciência e não a recuperou mais.

O que Whiting talvez não contasse é que há circuitos em que mesmo na chuva a velocidade de contorno das curvas é elevada. E há sempre o risco de um carro, mesmo o piloto tendo reduzido a velocidade, aquaplanar e seguir na direção desses tratores. Talvez agora a FIA comece a pensar em criar uma espécie de proteção lateral envolvendo esses tratores, seria um fator extra de segurança, com certeza.

Adrian Sutil abandonou hoje o GP do Japão na 42.ª volta, de um total original de 53, por perder o controle da Sauber na curva 7, quando a chuva tornou-se mais intensa e estava com os pneus intermediários da Pirelli, como todos os demais pilotos. Mais algumas voltas e a maioria os trocaria por pneus de chuva forte.

A exemplo de Sutil, Bianchi também não teve como controlar seu carro, no mesmo local. Passou sobre a caixa de brita da reduzida área de escape quase sem diminuir a velocidade, como em geral é o que acontecer com essas caixas hoje, por o assoalho deslizar sobre ela, e colidiu contra um trator que buscava retirar a Sauber de Sutil da área.

Podemos estimar a velocidade do impacto. Considerando-se que na chuva os carros contornam a curva 7 em quinta marcha, na média a cerca de 220 km/h, Bianchi deve ter batido a algo como entre 190 e 200 km/h.

As chances de algo dessa natureza acontecer eram realmente pequenas, mas existiam, mesmo o piloto respeitando a regra de diminuir a aceleração diante das duas bandeiras amarelas agitadas, como provavelmente foi o caso do francês.

Com os anos você aprende a o que ver nos carros, nos guardrails, na reação do pessoal de resgate e atendimento médico para entender, ainda que à distância, a extensão do acidente. O que mais me chocou, hoje, domingo de manhã, quando vi as fotos do acidente, já que não há imagens de TV, foi verificar que enquanto os médicos retiravam o capacete de Bianchi, inconsciente, não havia santantônio atrás dele.

Santantônio é um arco, atrás do cockpit. No caso da Fórmula 1 o orifício para a tomada de ar do motor corresponde a sua porção mais elevada.

Quando vi a foto da Marussia de Bianchi senti um frio na espinha. Imagine que o santantônio é projetado para se o carro decolar, vamos dizer, suportar o seu peso no choque com o solo, sem sofrer danos estruturais. Sua função é evitar que a cabeça do piloto receba o peso do carro se virar com as rodas para cima.

A FIA faz um teste de resistência que simula situações até mais exigentes de uma capotagem. Um cilindro hidráulico aplica forças no santantônio, variando o ângulo e sua intensidade, e sensores medem sua deformação. Trata-se de uma estrutura muito resistente.

E mesmo assim a Marussia estava sem o santantônio. No link abaixo vocês podem ter uma melhor ideia do que desejo explicar.

http://autosprint.corrieredellosport.it/?refresh_ce

Como não dispomos de imagens dinâmicas do acidente, não estava na área de cobertura das câmaras e o carro de Bianchi parou atrás do trator, não sabemos com precisão como foi o choque. O que é possível afirmar, contudo, é a intensidade do impacto, alucinantemente elevado, a ponto de tirar o santantônio do carro.

Isso é o que mais preocupa. Não quer dizer, necessariamente, que o capacete do piloto francês recebeu toda a carga do choque. Como disse, não vimos o acidente, mas diante de sabermos existir uma lesão craniana seguida de quadro hemorrágico, que exigiu intervenção cirúrgica, é possível afirmar que alguma tensão do impacto sobrou sobre a sua cabeça. Amanhã haverá novo comunicado médico.

Agora só nos resta emitir vibrações positivas para que Bianchi possa superar essa fase inicial mais crítica do processo de recuperação e torcer para que se houver sequelas sejam as menores possíveis.

Biachi nasceu em Nice, na França, onde resido. Sua família mora lá. Hoje ele passa a maior parte do tempo na Suíça francesa. Seu empresário, Nicolas Todt, francês, reside em Genebra. Mas Bianchi vai com regularidade a Nice. É um jovem de 25 anos bastante simples, simpático e costumamos conversar, em especial quando voamos juntos.

A última vez foi agora em junho. Embarcamos em Montreal para Zurique, na Suíça, e de lá viajamos para Nice, sempre nos mesmos aviões. Em determinado momento, no lounge da Swiss no aeroporto de Zurique, Bianchi disse-me que iria para a porta de embarque. Estranhei, pois faltavam duas horas para o nosso voo decolar para Nice.

Restando cerca de meia hora para a saída do voo, cheguei ao portão de embarque. Não havia começado, ainda. Normalmente permaneço lendo enquanto aquele tumulto todo se forma para querer entrar logo na aeronave, sendo que os lugares são, vocês bem sabem, demarcados. Dei uma olhada geral e não vi Bianchi.

Quando não mais havia fila, me apresentei para embarcar. Como não vi Bianchi entrar no voo, fiz uma coisa que nunca faço, perguntei no balcão se o passageiro Jules Bianchi já havia passado por lá. A moça, gentilmente, me respondeu não estar autorizada a me dizer. Disse-lhe tratar-se de um amigo e que, como eu, havia chegado horas antes de Montreal. Não adiantou, a atendente argumentou ser regra da companhia.

Dei uma olhada geral em volta da área do embarque, para ver se o via, afinal havíamos estado conversando por bom tempo juntos antes, e vi um cidadão estendido num lance de cadeiras, a uns 30 metros do portão. Tive a intuição de ir até lá. E… surpresa! A bolsa de mão com a identificação da Marussia me permitiu concluir que era Bianchi.

Ele dormira. Estava com o rosto voltado para o lado, com o braço encobrindo-o, daí eu só identificá-lo pela bolsa da equipe. Eu o acordei e disse que perderia o voo se não fosse rápido para o embarque. Demos risada. Obviamente agradeceu e enquanto íamos para o avião contou-me não ter dormido no voo de Montreal para Zurique. Nos despedimos, depois, no aeroporto de Nice.

Antes disso, conversamos bastante após o GP de Mônaco, cerca de duas semanas antes, apenas. Redigi um texto sobre sua proeza. Com uma condução precisa, veloz, fruto do seu talento, Bianchi terminou a corrida nas ruas do Principado, localizado ao lado de Nice, em brilhante nona colocação, depois de largar em 21.º.

Foi a primeira vez que uma equipe pequena, dentre as três que estrearam na Fórmula 1 em 2010, marcou pontos no Mundial. São elas: Marussia, então Virgin, Caterham, então Lotus Racing, e Hispania Racing Team – HRT, já não mais compete.

Elas passaram a existir porque o então presidente da FIA, Max Mosley, garantiu que haveria um limite orçamentário de 60 milhões de euros (R$ 200 milhões) por temporada. Não só não houve esse limite como Mosley sequer pôde concorrer à nova releição. Foi substituído pelo atual presidente, o francês Jean Todt.

Bianchi vem de uma família com grande tradição nas pistas, iniciada por seu avô, Mauro Bianchi, italiano naturalizado francês, e o irmão do avô, Luciano, naturalizado belga, então Lucien, ex-piloto de Fórmula 1. Lucien conquistou um pódio, terceiro lugar no GP de Mônaco de 1968, com Cooper-BRM. Lucien morreu nos treinos livres das 24 Horas de Le Mans de 1969, quando pilotava um Alfa Romeo.

O que se espera, agora, é que Jules Bianchi sobreviva e, se possível, volte a ser piloto de Fórmula 1. Muitos acreditam que se tivesse um carro minimamente competitivo iria demonstrar seu real talento. Seu sonho é pilotar para a Ferrari, por quem vem sendo preparado na sua academia de formação de jovens com potencial.

Com a saída de Alonso, Bianchi acreditou poder ser escolhido pela Ferrari. Mas havia a concorrência do tetracampeão do mundo, Sebastian Vettel, e claro acabou preterido.