Livio Oricchio

Fiat e Ferrari, uma coisa só. Pode não ser bom.

Livio Oricchio

16/X/14

São Paulo

Sergio Marchionne é desde segunda-feira presidente da Ferrari, além de presidente da Fiat, maior acionista da empresa de automóveis esportivos e da equipe de Fórmula 1. Como conciliar as duas atividades extremamente exigentes é a pergunta que muitos se fazem.

Em entrevista à imprensa inglesa, as declarações de Marchionne mais uma vez reforçam a impressão de que a Ferrari voltou a ser administrada como no tempo anterior à chegada de Jean Todt, ainda em 1993, ou seja, a direção da Fiat assume todas as responsabilidades pela escolha dos seus diretores e definição dos rumos.

Curto e grosso: é um risco. No período em que a Ferrari mais ficou distante de lutar pelo título, nos anos 80 e até meados dos 90, esse era o modelo de gestão. Uma coisa é administrar uma montadora de veículos, outra é uma organização de Fórmula 1. A receita de uma não serve para a outra.

De 1980 a 1993, a Fiat trocou cinco vezes o diretor da Ferrari e o resultado foi a equipe de maior história da Fórmula 1 apenas ver seus adversários festejarem a conquista de títulos. De 1980 a 1999 os italianos não venceram o Mundial de Pilotos. Eles ficaram para a Williams, Brabham, McLaren e Benetton.

O grande mérito de Todt foi entender o que se passava, chamar para si a responsabilidade pela liderança da Ferrari, confrontar por vezes a orientação que vinha da Fiat e promover profunda reestruturação no time. Muito importante: não mais mudaria tudo se os resultados não fossem os esperados.

Vários diretores

Entre 1980 e 1993 a Ferrari teve como diretores gerais Marco Piccinini, até 1988, Pier Giorgio Cappelli, 1988, Cesare Fiorio, 1989 a 1991, Claudio Lombardi, 1991 a 1992 e Sante Ghedini, 1992 a 1993. Sem mencionar o número de engenheiros que assinaram seus carros. No GP da França de 1993 Todt estreou na escuderia.

Com mão de ferro, respaldado pelo então presidente da Ferrari, Luca di Montezemolo, Todt se preocupou não apenas em levar a Ferrari a conquistar o título que há muito faltava, apesar de a Fiat nunca deixar de investir alto no time, mas de criar uma estrutura vencedora. A vitória num campeonato não poderia ser um episódio isolado. Deveriam decorrer dessa conquista muitas outras.

Para isso o francês sabia que precisaria de tempo. E a administração da Fiat, conforme a constante troca de diretores na época das vacas magras mostra, não tinha paciência. É a tal da visão empresarial. Um profissional não corresponde ao que se espera dele, promove outro de casa mesmo ou a indústria vai ao mercado e contrata outro.

Isso não funciona na Fórmula 1. A maior prova é a série de duas décadas sem títulos da Ferrari, mesmo dispondo de orçamento semelhante ao dos campeões, senão superior.

Além de Todt, Montezemolo teve grande mérito no que se seguiu à conquista do primeiro Mundial de Pilotos, por Michael Schumacher, em 2000. Foram mais quatro na sequência, na série de maior sucesso da história da Fórmula 1. Cinco títulos seguidos de pilotos, de 2000 a 2004, e seis de construtores, de 1999 a 2004.

Montezemolo criou um escudo ao redor da Ferrari, deixou os responsáveis pela coluna dorsal da organização trabalhar. Além de Todt, faziam parte Rory Byrne, na área de projeto dos carros, Ross Brawn, diretor técnico, Gilles Simon, motores, e Schumacher, claro.

Fiat e Ferrari, uma coisa só

Agora, não existe mais esse escudo criado por Montezemolo, para isolar o modelo de gestão de uma montadora do que administra a escuderia de Fórmula 1. Pois o próprio presidente da Fiat é agora também presidente da Ferrari.

Veja o que ele disse para a revista inglesa Autocar em relação ao que pretende fazer: ''Precisamos dar ainda alguns pés na bunda (de certos integrantes do time) e rápido''. Talvez até proceda o que Marchionne planeja, mas os sinais que vem emitindo nos remete, de imediato, ao período em que quando as coisas não andavam eles trocavam tudo. E na Fórmula 1 as conquistas são o fruto de um longo processo de fortalecimento da estrutura da equipe.

Foi Marchionne quem ordenou Montezemolo dispensar Stefano Domenicali depois do GP de Bahrein, este ano, após mais de seis anos como diretor da Ferrari, o substituto de Todt. Foi Marchionne quem dispensou Montezemolo na segunda-feira seguinte GP da Itália, dia 8 de setembro.

Na entrevista para a revista inglesa Marchionne afirmou: ''Eu vou a Monza e vejo que entre os seis primeiros colocados não há nenhuma Ferrari ou são equipados com motor Ferrari. Minha pressão sanguínea subiu''.

Hora certa

Mas o presidente da Fiat e da Ferrari assumiu a equipe num bom momento, com a reestruturação iniciada por Domenicali este ano, depois de compreender que o maior problema da Ferrari é na área de projeto. Os carros não são bem concebidos, iniciam a temporada muito atrás da concorrência.

Pode parecer um paradoxo, mas é real. O novo presidente da Ferrari chegou numa hora que, apesar da crise que a organização atravessa, que culminou com a perda do melhor piloto da competição, Fernando Alonso, não é a pior. Ao contrário, a perspectiva da Ferrari para 2015 é positiva.

Os dois responsáveis pelo modelo do ano que vem são comprovadamente capazes, James Allison, coordenador, e Dirk de Beer, aerodinâmica, os mesmos que produziram os eficientes carros da Lotus em 2012 e 2013. Além disso o setor da unidade motriz foi também reestruturado.

Existe uma chance razoável de os pilotos da Ferrari em 2015, provavelmente Sebastian Vettel e Kimi Raikkonen, disporem de um monoposto bem mais veloz e regular que o atual de Alonso e Raikkonen. Isso se o pé na bunda que Marchionne diz que dará não for em Raikkonen, hoje com 47 pontos, 12.º colocado, diante de 141 de Alonso, sexto. E o finlandês põe no bolso algo perto de 20 milhões de euros por ano.

Não é possível destarcar a hipótese de Marchionne trocar os dois pilotos.

Voltando, se a Ferrari de fato produzir um carro bem mais eficiente em 2015 – insisto, as possibilidades existem e não são pequenas – a impressão que esse eventual sucesso vai passar é que foi a mexida da presidência e direção da Ferrari que gerou a nova fase, com Vettel e o companheiro passarem a lutar pelas primeiras colocações.

Marchionne e o substituto de Domenicali, Marco Mattiacci, indicado pelo próprio Marchionne, obviamente são homens inteligentes e capazes, haja vista a expressão atingida dentro do Grupo Fiat. Mattiacci era o responsável da Ferrari automóveis nos Estados Unidos. Mas, como escrevi, são profissionais brilhantes em outras áreas de atuação, onde se mede a maior ou menor eficiência através de critérios distintos dos da Fórmula 1.

Lidar com a vaidade

Por tudo o que cerca a Fórmula 1, glamour, exposição maciça na mídia, valores dos contratos, badalação, há um elemento fundamental a ser considerado na gestão da equipe: vaidade. Saber lidar com esse fator fundamental na equação do sucesso é imprescindível para vencer.

Mattiacci chegou e, de cara, viu-se desafiado por Alonso. O italiano deve ter levado o caso a Marchionne que, pelo seu entendimento do mundo empresarial, não hesitou em mostrar quem vai mandar na organização. Orientou Mattiacci falar com Vettel, como um cala a boca a Alonso. A mensagem foi mais ou menos esta: ''Você é um campeão, é bem vindo, mas aqui você acata e não dá ordens''.

Conclusão: mesmo se o espanhol pensasse em, eventualmente, permanecer, pois viu que a reestruturação em curso deve dar resultado já no ano que vem, agora é tarde. Mattiacci não criou caso também para liberar Alonso da multa contratual que existia, pois o compromisso se estendia até o fim de 2016. Vettel atende amplamente os interesses da nova gestão da Ferrari.

O que se espera da dupla Marchionne-Mattiacci é que não repitam, como vêm sugerindo claramente, o modelo de administração da Ferrari baseado no que trazem da montadora. A história da própria Ferrari está aí, e não tão distante, para mostrar que não vai funcionar. A Ferrari forte, adversária de Mercedes, Red Bull, McLaren, Lotus, é saudável para a Fórmula 1.